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(G1 - cftrj 2019)Por que temos poucos memoriais de

Redação | argumentação e contra-argumentação
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(G1 - cftrj 2019)

Por que temos poucos memoriais de abolição da escravidão?

Lilia Schwarcz

Lembrar é uma forma de não deixar esquecer. O Brasil foi destino de mais de 40% de africanos e africanas por aqui escravizados, e precisa cuidar, de maneira crítica, da sua memória.

Bem no meio da pacata cidade de Nantes, na França, uma calçada reluz estranhamente ao Sol. São centenas de pequenas placas retangulares, feitas de um vidro translúcido e de cor azul celeste, espalhadas por uma via onde passam mães levando seus carrinhos de bebê, rapazes andando de bicicleta, moços e moças fazendo 1jogging, senhores e senhoras apressados a caminho do trabalho.

Somente apurando bem os olhos é possível notar que há sempre um título gravado por debaixo desses delicados sinais brilhantes, dispostos simetricamente ao chão. Le Saint Jean Baptiste, Le Juste, L’Union, La Valeur, La Felicité, Le Bien Aimée e Brásil2 são alguns dos muitos nomes de navios negreiros que, desde o século 16 e até o final do 19, partiram de porto de Nantes ou lá aportaram. Os apelidos dados aos barcos parecem denotar uma certa culpa, tamanha a desproporção entre eles e a tarefa que buscavam descrever.

Essas eram embarcações que transportavam de tudo um pouco: tecidos, produtos agrícolas, azulejos, minérios, especiarias, mas, acima de tudo, pessoas. Eles eram tumbeiros, navios negreiros que faziam o comércio de almas no contexto moderno, quando o mundo ocidental reinventou uma nova escravidão; uma escravidão mercantil. Os navios vinham e voltavam cheios de “mercadorias”. Não havia espaço ocioso ou lugar nas embarcações que deixassem de auferir lucro: de uma ponta saíam produtos agrícolas, de outra, metais preciosos, de outra, ainda, africanos e africanas transformados em valiosos objetos de comércio.

Foram recenseadas mais de 27.233 expedições marítimas que partiram de portos europeus durante esses quatro longos séculos em que perdurou o sistema escravocrata. No total, mais de 12 milhões e meio de mulheres, homens e crianças foram arrancadas à força da África e deportados para as Américas e para o caribe. Mais de um milhão e meio dessas pessoas morreram durante a travessia. Só de Nantes saíram em torno de 1.800 expedições negreiras, tendo elas apresado mais 550 mil africanos e africanas.

Os números são fortes, definitivos, e explicam o motivo da criação, em Nantes, de um impressionante “Memorial da abolição da escravidão”, inaugurado no dia 25 de março de 2012. A edificação é discreta e ao mesmo tempo tocante. Na verdade, é preciso conhecer o lugar, ou ser previamente informado, para saber que na cidade existe um memorial e, ademais, um museu basicamente dedicado ao tema.

Andar por aquela estranha calçada, agachar para ler os nomes dos navios, observar as datas em que cada uma destas embarcações circulou, olhar para o mesmo mar, acaba sendo um exercício muito doloroso. Difícil sair de lá da mesma maneira como se chegou. É impossível deixar de anotar a inacreditável quantidade de naus dedicadas a esse comércio de almas, que gerou a maior 3diáspora desde a época romana. Mais difícil ainda é tentar visualizar a maneira como se “armazenavam” os bens importados, sem discriminação de pessoas ou produtos. Esse talvez seja o motivo de o memorial continuar numa espécie de subsolo, onde se encontra uma cronologia da escravidão e um a série de frases retiradas de textos de ativistas, literatos e filósofos que lutaram pela abolição desse sistema. [...]

Memória e história nem sempre andam juntas. Afinal, muitas vezes, quando é difícil lembrar, o melhor caminho parece ser ignorar. Fico me perguntando, no entanto, se esquecer ou descuidar não são maneiras de dar espaço à incredulidade e de construir o pouco caso diante de uma realidade tão brutal e tão presente em nossa história nacional contemporânea.

Em maio de 2018 faremos 130 anos de abolição da escravidão mercantil no Brasil. Que a data vire cicatriz. Como escreveu Caio Fernando Abreu: “Menos pela cicatriz deixada, uma ferida antiga mede-se mais exatamente pela dor que provocou, e para sempre perdeu-se no momento em que cessou de doer, embora lateje louca nos dias de chuva”.

(Adaptado de Nexo Jornal Ltda. Coluna. 9 de abril de 2018. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2018/Por-que-temospoucos-memoriais-de-aboli%C3%A7%C3%A3o-da-escravid%C3%A3o. Acesso em 17 de setembro de 2018.)

Notas:

1Corrida

2São João Batista, O Justo, A União, O Valor, A Felicidade, O Bem-Amado e Brasil.

3Dispersão de um povo em consequência de preconceito ou perseguição política, religiosa ou étnica.

Na construção da argumentação do texto, a referência à cidade de Nantes, na França, cumpre principalmente o papel de:

A

criar uma digressão no texto, desviando o leitor das questões imprescindíveis para o processo de argumentação.

B

comprovar o grande repertório cultural e vivencial da autora, que ganha maior credibilidade dos leitores.

C

estabelecer uma oposição com a realidade brasileira, em que há poucos memoriais da abolição da escravidão.

D

explicitar que a situação da França em relação à existência de memoriais de abolição da escravidão assemelha-se à brasileira.