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(UERJ 2018)COM O OUTRO NO CORPO, O ESPELHO PARTIDO

(UERJ 2018)

COM O OUTRO NO CORPO, O ESPELHO PARTIDO

O que acontece com o sentimento de identidade de uma pessoa que se depara, diante do espelho, com um rosto que não é seu? Como é possível manter a convicção razoavelmente estável que nos acompanha pela vida, a respeito do nosso ser, no caso de sofrermos uma alteração radical em nossa imagem? Perguntas como essas provocaram intenso debate a respeito da ética médica depois do transplante de parte da face em uma mulher que teve o rosto desfigurado por seu cachorro em Amiens, na França.

Nosso sentimento de permanência e unidade se estabelece diante do espelho, a despeito de todas as mudanças que o corpo sofre ao longo da vida. A criança humana, em um determinado estágio de maturação, identifica-se com sua imagem no espelho. Nesse caso, um transplante (ainda que parcial) que altera tanto os traços fenotípicos quanto as marcas da história de vida inscritas na face destruiria para sempre o sentimento de identidade do transplantado? Talvez não.

Ocorre que o poder do espelho – esse de vidro e aço pendurado na parede – não é tão absoluto: o espelho que importa, para o humano, é o olhar de um outro humano. A cultura contemporânea do narcisismo*, ao remeter as pessoas a buscar continuamente o testemunho do espelho, não considera que o espelho do humano é, antes de mais nada, o olhar do semelhante.

É o reconhecimento do outro que nos confirma que existimos e que somos (mais ou menos) os mesmos ao longo da vida, na medida em que as pessoas próximas continuam a nos devolver nossa “identidade”. O rosto é a sede do olhar que reconhece e que também busca reconhecimento. É que o rosto não se reduz à dimensão da imagem: ele é a própria presentificação de um ser humano, em sua singularidade irrecusável. Além disso, dentre todas as partes do corpo, o rosto é a que faz apelo ao outro. A parte que se comunica, expressa amor ou ódio e, sobretudo, demanda amor.

A literatura pode nos ajudar a amenizar o drama da paciente francesa. O personagem Robinson Crusoé do livro Sexta-feira ou os limbos do Pacífico, de Michel Tournier, perde a noção de sua identidade e enlouquece, na falta do olhar de um semelhante que lhe confirme que ele é um ser humano. No início do romance, o náufrago solitário tenta fazer da natureza seu espelho. Faz do estranho, familiar, trabalhando para “civilizar” a ilha e representando diante de si mesmo o papel de senhor sem escravos, mestre sem discípulos. Mas depois de algum tempo o isolamento degrada sua humanidade.

A paciente francesa, que agradeceu aos médicos a recomposição de uma face humana, ainda que não seja a “sua”, vai agora depender de um esforço de tolerância e generosidade por parte dos que lhe são próximos. Parentes e amigos terão de superar o desconforto de olhar para ela e não encontrar a mesma de antes. Diante de um rosto outro, deverão ainda assim confirmar que ela continua sendo ela. E amar a mulher estranha a si mesma que renasceu daquela operação.

MARIA RITA KEHL

Adaptado de folha.uol.com.br, 11/12/2005.

"A literatura pode nos ajudar a amenizar o drama da paciente francesa."

No penúltimo parágrafo, a história do personagem citado pela autora reforça a seguinte tese central do texto:

A

interferência do progresso sobre as ações individuais

B

imposição da imaginação sobre os fatos objetivos

C

insuficiência da civilização para o bem-estar geral

D

importância do contato para a condição humana