(IFSP 2016) Leia o texto abaixo, um trecho do Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, para assinalar a alternativa correta no que se refere à obra desse autor e ao Humanismo em Portugal.
Nota: foram feitas pequenas alterações no trecho para facilitar a leitura.
Vem um Frade com uma Moça pela mão, e um 1broquel e uma espada na outra, e um 1casco debaixo do 2capelo; e, ele mesmo fazendo a baixa, começou de dançar, dizendo:
FRADE Tai-rai-rai-ra-rã; ta-ri-ri-rã;
ta-rai-rai-rai-rã; tai-ri-ri-rã: tã-tã;
ta-ri-rim-rim-rã. Huhá!
DIABO Que é isso, padre?! Que vai lá?
FRADE Deo gratias! Sou cortesão.
DIABO Sabes também o tordião?
FRADE Por que não? Como ora sei!
DIABO Pois entrai! Eu tangerei
e faremos um serão.
Essa dama é ela vossa?
FRADE Por minha a tenho eu,
e sempre a tive de meu
DIABO Fizestes bem, que é formosa!
E não vos punham lá 3grosa
no vosso convento santo?
FRADE E eles fazem outro tanto!
DIABO Que cousa tão preciosa...
Entrai, padre reverendo!
FRADE Para onde levais gente?
DIABO Pera aquele fogo ardente
que não temestes vivendo.
FRADE Juro a Deus que não te entendo!
E este hábito não me vale?
DIABO Gentil padre mundanal,
a Belzebu vos encomendo!
1broquel e casco – respectivamente, escudo e armadura para cabeça – são elementos por meio dos quais o autor descreve o frade.
2capelo – chapéu ou capuz usado pelos religiosos.
3pôr grosa – censurar.
O destino do frade é exemplar no que se refere à principal característica da obra de Gil Vicente: a crítica severa, de sabor renascentista, à Igreja Católica, de cuja moral se distancia a obra do dramaturgo.
A proposta do teatro vicentino alegórico – especialmente a Trilogia das Barcas – era a montagem de peças complexas, de linguagem rebuscada, distante do falar popular, para criticar, nos termos da moral medieval, os homens do povo.
A imagem cômica, mas condenável, de um frade que canta, dança e namora, trazendo consigo uma dama, é exemplo cabal do pressuposto das peças de Gil Vicente de que, rindo, é possível corrigir os costumes.
O frade terá como destino o inferno porque é homem “mundanal”, ligado aos gozos do mundo material, em cujo pano de fundo percebe-se o sistema de valores do homem medieval, para o qual não há salvação após a morte.
O sistema de valores que pode ser entrevisto nas peças de Gil Vicente, e especialmente no Auto da Barca do Inferno, revela uma mentalidade avessa aos valores da Idade Média.